A família é o lugar dos maiores amores e dos maiores ódios. Compreensível: quem mais tem capacidade de amar, mais tem capacidade de ferir. A mão que afaga é aquela de quem ninguém se protege, e quando agride, causa dores na alma, pois toca o ponto mais profundo de nossas estruturas afetivas. Isso vale não apenas para a família nuclear: pais e filhos, mas também para as relações de amizade e parceria conjugal, por exemplo.
Nos anos de experiência pastoral
observei que poucos sofrimentos se comparam às dores próprias de
relacionamentos afetivos feridos pela maldade e crueldade consciente ou
inconsciente. Os males causados pelas pessoas que amamos e acreditamos que
também nos amam são quase insuperáveis. O sofrimento resultado das fatalidades,
como doenças fatais e acidentes naturais, são acolhidos como vindos de forças
cegas, aleatórias e inevitáveis. Às vezes encaradas como vindas de Deus. Mas a
traição do cônjuge, a opressão dos pais, a ingratidão dos filhos, a rixa entre
irmãos, nos chegam dos lugares menos esperados: a peçonha mortal está
justamente no ninho onde deveríamos nos sentir protegidos.
Poucas são minhas conclusões, mas
enxerguei pelo menos três aspectos dessa infeliz realidade das dores do amar e
ser amado. Primeiro, percebo que a consciência da mágoa e do ressentimento nos
chega inesperada, de súbito, como que vindo pronta, completa, de algum lugar,
mas quando chega nos permite enxergar uma longa história de conflitos, mal entendidos,
agressões veladas, palavras e comentários infelizes, atos e atitudes danosos,
que foram minando a alegria da convivência, criando ambientes de estranhamento
e tensões e promovendo distâncias abissais. Quando nos percebemos longe das
pessoas que amamos é que nos damos conta dos passos necessários para que a
trilha do estranhamento fosse percorrida: um passo de cada vez, muitos deles
pequenos e que na ocasião foram considerados irrelevantes, mas somados explicam
as feridas profundas dos corações.
Outro aspecto das dores do amar e ser
amado está no paradoxo das razões de cada uma das partes. Acostumados a pensar
em termos da lógica cartesiana: 1 + 1 = 2 e B vem depois de A e antes de C, nos
esquecemos que a vida não se encaixa no padrão “se–então” do mundo das ciências
exatas. Pessoas não são máquinas, emoções e sentimentos não são números,
relacionamentos não são engrenagens. Imaginar que as relações afetivas podem
ser enquadradas na simplicidade dos conceitos certo e errado, verdade e mentira,
preto e branco é uma ingenuidade. A vida é zona cinzenta, pessoas podem estar
certas e erradas ao mesmo tempo, cada uma com sua razão, e a verdade de um pode
ser a mentira do outro. Os sábios ensinam que “todo ponto de vista é a vista de
um ponto”, e considerando que cada pessoa tem seu ponto, as cores de cada vista
serão sempre ou quase sempre diferentes. Isso me leva ao terceiro aspecto.
Justamente porque as feridas dos
corações resultam de uma longa história, lida de maneira diferente por todas e
cada uma das partes, o exercício de passar a limpo cada passo da jornada me
parece inadequado para a reconciliação. Voltar no tempo para identificar os
momentos cruciais da caminhada, identificar o que é importante para um e para
outro, e fazer a análise das razões de cada um, buscar acordo e pedir e
outorgar perdão ponto por ponto não me parece ser a melhor estratégia para as
reaproximação dos corações e cura das almas.
Estou ciente das propostas
terapêuticas, especialmente aquelas que sugerem a necessidade de ressignificar
a história e seus momentos específicos: voltar nos eventos traumáticos e dar a
eles novos sentidos. Creio também na cura pela fala. Admito que a tomada de
consciência e a possibilidade de uma nova perspectiva produzem libertações, ou
no mínimo, alívios, que de outra maneira dificilmente nos seriam possíveis. Mas
por outro lado posso testemunhar quantas vezes já assisti esse filme com final
nada feliz. Minha conclusão é simples (espero que não simplória): o que faz a diferença
para a experiência do perdão não é a qualidade do processo de fazer acordos a
respeito dos fatos que determinaram o distanciamento, mas a atitude dos
corações que buscam a reaproximação. Em outras palavras, uma coisa é olhar para
o passado com a cabeça, cada um buscando convencer o outro de sua razão, outra,
é olhar para o outro com o coração amoroso, desejoso verdadeiramente do abraço
perdido, independentemente de quem tem ou deixa de ter razão. Abraços criam
espaço para acordos, mas acordos nem sempre terminam em abraços.
Essa foi a experiência entre José e
seus irmãos. Depois de longos anos de afastamento e uma triste história de
competições explícitas, preferências de pai e mãe, agressões, traições e
abandonos, voltam a se encontrar no Egito: a vítima em posição de poder contra
seus algozes. José está diante de um dilema: fazer justiça ou abraçar. Deseja
abraçar, mas não consegue deixar o passado para trás. Ao tempo em que fala com
seus irmãos, sai para chorar, e seu desespero é tal que todos no palácio
escutam seu pranto. Mas ao final se rende: primeiro abraça e depois discute o
passado. Essa é a ordem certa. Primeiro porque os abraços revelam a atitude dos
corações, mais preocupados em se aproximar do que em fazer valer seus direitos
e razões. Depois porque uma vez abraçados, o passado perde força e as
possibilidades de alegrias no futuro da convivência restaurada esvaziam a
importância das tristezas desse passado funesto.
Quando as pessoas decidem colocar
suas mágoas sobre a mesa, devem saber que manuseiam nitroglicerina pura. As
palavras explodem com muita facilidade, e podem causar mais destruição do que
promover restauração. Não são poucos os que se atrevem a resolver conflitos e
no processo criam outros ainda maiores, aprofundam as feridas que tentavam
curar, ou mesmo abrem novamente o que estava cicatrizado. Tudo depende do
coração. O encontro é ao redor de pessoas ou de problemas? A intenção é a
reconciliação entre as pessoas ou a busca de soluções para os problemas? Por
exemplo, quando percebo que sua dívida para comigo afastou você de mim, vou ao
seu encontro em busca do pagamento da dívida ou da reaproximação afetiva? Nem
sempre as duas coisas são possíveis. Infelizmente, minha experiência mostra que
a maioria das pessoas prefere o ressarcimento da dívida em detrimento do
abraço, o que fatalmente resulta em morte: as pessoas morrem umas para as
outras e, consequentemente, as relações morrem também. Somente o perdão abre os
horizontes para o futuro da comunhão. Ficar analisando o caderno onde as
dívidas estão anotadas e discutindo o que é justo e injusto, quem prejudicou
quem e quando, pode resultar em algum dinheiro no caixa, mas esse dinheiro será
sempre insuficiente, pois dívidas de amor são impagáveis.
Autor: Ed René Kivitz
"Perdoar não é simplesmente um ato de misericórdia ou compaixão, mas uma resolução de conflito. É deixar o outro livre de nossas cargas e obstáculos, para que ele possa se apresentar diante de Deus sem barreiras. É decidir conscientemente que as lembranças da memória serão menos importantes do que as possibilidades das esperanças. Perdoar implica uma sensibilidade e empatia imensas, um exercício profundo da ternura humana. Esse coração só se consegue ao lado de Deus, pois o perdão divino não é apenas o perdão da transgressão, mas a redenção do pecado" (Víctor Armenteros, MD 21082024).
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