Por que
tantos crentes têm deixado suas igrejas?
A Palavra de Deus ensina que os crentes formam a família de Deus. O
Corpo de Cristo, no modelo bíblico, deve perseverar na caminhada cristã em
unidade de espírito e em amor, assim como os fiéis da Igreja primitiva estavam
unidos em torno da doutrina dos apóstolos, do partir do pão e da oração,
conforme o relato de Atos 2.42. Dessa forma, quem é salvo por Cristo e, assim,
pertence à família da fé, o organismo místico que congrega aqueles que um dia
foram lavados pelo sangue do Cordeiro, precisam permanecer unidos para
funcionarem adequadamente. Nunca se viu uma orelha ou um pé andando por aí,
sozinhos, porque se cansaram do corpo do qual faziam parte! A própria parábola
da ovelha perdida, registrada em Lucas 15, demonstra que a vontade do Senhor é
de que nem um crente sequer fique separado do rebanho. A Carta aos Hebreus
ainda admoesta o cristão a não abandonar a sua igreja local, como era o costume
de alguns já naquela época.
No entanto, o que temos observado nos arraiais evangélicos é algo bem
diferente disso. Já é comum encontrarmos, em nossas igrejas – ou melhor, fora
delas –, crentes que se cansaram de ser corpo. Os mais variados motivos são
alegados; alguns dos quais, muito razoáveis, como fadiga espiritual, cansaço
com modelos eclesiásticos pesados e opressores demais, frustração com a falta
de resultados da espiritualidade na vida prática etc. Há quem, ainda, alegue
motivos de ordem pessoal, como a intenção de se dedicar mais a projetos
próprios ou o desejo de congregar em grupos mais restritos e homogêneos, longe
do burburinho eclesiástico. Não há como deixar de fazer juízos de valor acerca
de cada uma dessas afirmativas, mas é preciso, para ser justo, avaliar algumas
delas à luz do Evangelho e da própria trajetória recente do movimento
evangélico no Brasil.
Houve um tempo em que a conversão era tratada como um assunto sério.
Tornar-se crente implicava em renúncia. O recém-convertido era estimulado a dar
espaço à ação do Espírito Santo em sua vida e abandonar a prática deliberada do
pecado. O crente era conhecido como o sujeito que abandonou a bebida, o fumo e
a dissolução para viver em novidade de vida, de acordo com os ensinos da
Palavra de Deus. E esse processo passava, necessariamente, pela igreja. Essa
ruptura com o mundo gerava no indivíduo uma noção arraigada de pertencimento ao
grupo pelo qual conhecera o Evangelho.
Pelo batismo, o novo crente se vinculava a uma família de fé – a igreja
local – e nela construía, ou reconstruía, a sua vida. Era na igreja que ele
conquistava amizades profundas e duradouras. As atividades eclesiásticas
ocupavam boa parte de sua agenda, e uma das prioridades essenciais era
participar dos cultos, colaborar e submeter-se, em amor, às lideranças e
desenvolver ministérios voltados para a congregação. Assim, a pessoa, juntamente
com sua família, passava anos e até décadas numa mesma denominação, o que
gerava uma inarredável identidade confessional. "Sou batista"; ou
"sou assembleiano"; ou, ainda, "pertenço à Igreja
Quadrangular", era o tipo de resposta que um evangélico dava acerca de sua
confissão. Havia identidade com o grupo. A igreja era uma extensão da vida do
indivíduo, importante e relevante referência pessoal.
Isso está cada vez mais raro. Nos últimos anos, é possível constatar
muita gente se tornando evangélica sem se converter. Busca-se uma igreja ou
leva-se para ali uma oferta financeira ou o dízimo em busca apenas de uma
recompensa material. As novas igrejas neopentecostais, justamente o grupo
religioso que mais cresceu no país nas últimas décadas, redefiniram a conversão.
Ser salvo, hoje, não significa ser salvo do pecado, do inferno, da inimizade
com Deus, mas sim, ser salvo da dívida, da doença e da pobreza para uma vida de
prestígio e sucesso financeiro. Assim, o crente, transformado em consumidor,
circula de igreja em igreja em busca dos melhores produtos – e exige ser
atendido imediatamente, como um cliente zeloso que paga a fatura e quer levar o
produto. Não existe mais interesse e nem tempo para se construir um projeto de
vida espiritual a médio e longo prazos. O crente moderno tem pressa em ser
atendido. Se não o for num lugar, partirá em busca de outras opções.
Com isso, a experiência do sagrado passa a ser múltipla, ao invés de
ligada a um ou, no máximo, poucos grupos eclesiásticos ao longo da vida.
"Os migrantes religiosos geralmente recusam laços de pertença definida, e
apegam-se a crenças e práticas que lhes parecem melhor adequar-se a si e ao
estilo de vida que escolheram", diz o professor Alessandro Bartz, da
Escola Superior de Teologia de São Leopoldo (RS). E, diante do fracasso das
soluções mágicas, um grande contingente acabas abandonando tudo, passando a
engrossar as estatísticas dos desviados da fé.
PORTA AFORA
As próprias igrejas, muitas e muitas vezes, se encarregam de empurrar
seus membros porta afora. Não há prestação de contas à congregação, tanto das
questões financeiras quanto morais, e a enorme distância entre o pastor e a
ovelha é uma constante. O fiel não encontra na igreja aquele ambiente acolhedor
para suas angústias e carências espirituais; ao contrário, o ambiente é
competitivo, com membros passando a perna uns nos outros em busca de cargos e
notoriedade, e isso acontece também devido a modelos adoecidos de liderança.
Além disso, não há propostas estimulantes e falta uma mensagem relevante, que
ofereça alternativas interessantes àquilo que os membros, sobretudo os mais
jovens, encontram fora da igreja. Assim, o culto se torna um ajuntamento chato
e sem sentido, com a repetição de liturgias e jargões desprovidos de sentido
prático e de uma espiritualidade genuína.
Ao mesmo tempo, o crente sofre o assédio do hedonismo, vertente
filosófica da era pós-socrática que professa que o prazer é o bem supremo da
vida. Alguém já disse que três coisas movem a sociedade brasileira: sexo,
cartão de crédito e drogas. Muitos crentes não escapam disso. Surgiu no seio da
Igreja Evangélica brasileira uma geração que não tem mais qualquer disposição
para sofrer pelo Evangelho. A busca da gratificação imediata ocupa um espaço
considerável na agenda de muitos. As próprias músicas cantadas hoje demonstram
tal atitude. Uma delas diz: "Sei que hoje é meu dia, chegou a minha
vez". Verbos e termos importantes da fé cristã – como esperar, sofrer,
compartilhar, humilhar-se e arrepender-se – foram substituídos por outros, mais
de acordo com os tempos em que vivemos: conquistar, vencer, tomar posse e
determinar.
O grupo dos desigrejados não para de se avolumar, também, porque uma
grande parte da Igreja brasileira perdeu o interesse pelo ensino da Palavra de
Deus. O livro A cabana, best-seller de William P.Young, fala com desdém sobre a
Escola Bíblica dominical, centenária instituição cristã que deveria estar na
base de qualquer igreja que se confessa cristã. Hoje, no entanto, tudo o que
muitas igrejas precisam é de um salão com dois banheiros. Não há preocupação em
montar uma estrutura de ensino para se atender crianças, adolescentes, jovens e
adultos em suas necessidades de conhecimento da Palavra. Geralmente, são muitos
cultos por dia, algo que impossibilita o ensino sistemático e consistente da
Bíblia.
Existe hoje, no Brasil, uma Igreja Evangélica que não conhece mais a sua
história, suas origens e sua teologia. Esses herdeiros da Reforma Protestante
desconhecem por completo suas doutrinas, tais como a justificação pela fé, a
eleição, a regeneração e a graça salvadora. Por isso, sua crença é débil, sem
fundamentação nas Escrituras e na tradição cristã, e faltam-lhe alicerces
seguros. Por outro lado, mesmo naquelas denominações onde o estudo da Palavra e
a mensagem são consistentes, outras situações são alegadas pelos membros para
se afastarem delas: são as contrariedades, decepções ou conflitos comuns a
qualquer agrupamento humano, e não deixaria de ser assim nas igrejas, formadas
que são por seres humanos.
Porém, não era assim há tempos atrás. Se algo não ia bem numa igreja –
se o fiel fosse maltratado pelo pastor ou por algum irmão, ou se suas
expectativas não se cumpriam, ele aguardava, e por muito tempo, em oração e
resignação. Sua esperança era de que Deus "faria a obra", mudando as
coisas, transformando os corações e promovendo o reencontro. Ao mesmo tempo, o
crente insatisfeito insistia em permanecer na igreja, colaborando, na medida do
possível, para a melhoria das coisas e a escolha de prioridades que lhe
pareciam mais acertadas. Ele sabia esperar. Suas raízes estavam fincadas ali e
não era qualquer luta que o removeria do lugar onde Deus o colocara.
OVELHAS SOLITÁRIAS
É pena que a mentalidade evangélica tenha mudado tanto, e para pior.
Milhões de evangélicos hoje, no Brasil, e principalmente nos grandes centros
urbanos, estão, constantemente, circulando de igreja em igreja. Não criam
raízes, não conseguem cultivar relacionamentos e são avessos aos compromissos
que naturalmente surgem do relacionamento entre o fiel e sua igreja: a
frequência aos cultos, a colaboração financeira, o envolvimento nas atividades
congregacionais e o engajamento nos projetos da comunidade. Há muita gente,
hoje, que prefere visitar uma mega-igreja de vez em quando e simplesmente
diluir-se na multidão. Ali, a pessoa entra e sai sem ser notada ou cobrada de
alguma coisa.
E quanto àqueles que preferem o chamado "Cristo em casa", ou
seja, uma vivência de fé circunscrita ao próprio indivíduo, à sua família ou,
no máximo, a um pequeno grupo de amigos que pode ser tudo, menos igreja? Para
estes, congregar em uma igreja é algo arcaico e desestimulante. Preferem uma
vida de crente não praticante, restringindo sua espiritualidade a práticas
devocionais isoladas, sem a boa e enriquecedora troca de experiências e
testemunhos, sem discipulado, sem orientação pastoral. Para estes, o risco do
esfriamento completo da fé é mais elevado – afinal, ovelha, sozinha, é presa
mais fácil para o lobo.
Paulo Romeiro é pastor da Igreja Cristã da
Trindade, em São Paulo, e doutor em Ciências da Religião. É autor, entre
outros, dos livros Evangélicos em crise e Decepcionados com a graça.
Fonte: www.cristianismohoje.com.br
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