Imagine o Senhor ressurreto reunindo seus discípulos para as últimas instruções a respeito da missão da igreja na terra. Eles passaram por tempos difíceis. A dramática Ceia, a prisão e julgamento injustos, a horrenda crucificação, o sepultamento desesperador, o sábado mais sombrio da história. Depois disso, o aviso estranho das mulheres sobre o corpo desaparecido. A corrida até o túmulo. As aparições. As refeições. E agora, era o momento da última instrução.
Jesus volta-se para seus seguidores
e entrega uma missão.
Portanto ide, fazei discípulos de
todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo;
ensinando-os a guardar todas as coisas que eu vos tenho mandado.
Se necessário, usem palavras. (cf. Mt 28.18-20)
Os discípulos estranham. Mas se é
assim, tudo bem. Assim, em sua primeira carta, Pedro exorta os crentes:
Estai sempre preparados para
responder com mansidão e temor a qualquer que vos pedir a razão da esperança
que há em vós. Se necessário, usem palavras. (cf. 1 Pe 3.15)
Paulo, que entregou o que também
recebeu (provavelmente sem palavras) exorta seu filho na fé, Timóteo:
As palavras que me ouviu dizer na
presença de muitas testemunhas, confie-as a homens fiéis que sejam também
capazes de ensinar outros. Se necessário, use palavras. (cf. 2 Tm 2.2)
Mas, pensando bem. Isso não é tão
estranho. A tradição profética do Antigo Testamento também obsevava a prática
de entregar mensagens e ensinar sem palavras.
Escreve a visão e torna bem legível
sobre tábuas, para que a possa ler quem passa correndo. Se necessário, use
palavras. (cf.
Habacuque 2.2)
Vá em direção ao vale de Ben-Hinom,
perto da entrada da porta dos Cacos. Proclame ali as palavras que eu lhe
disser. Se necessário, use palavras. (cf. Jeremias 19.2)
Sem
palavras?
Como muitas das frases de efeito
populares entre os evangélicos, a famosa “Pregue o Evangelho. Se necessário,
use palavras” esconde mais perigos do que cuidadosa reflexão pastoral e
teológica¹. Ela tem o tom de piedade, parece uma exortação, e exige uma resposta
longa demais para que os defensores dela gastem tempo ouvindo. Quando faltam
argumentos, sobram chavões. E os erros se repetem.
Alguns podem argumentar que a
verdadeira fé é conhecida por suas obras. E isso é verdadeiro. Outros podem dizer
que Jesus nos manda ser o sal da terra e diz que os homens devem dar glória a
Deus por nossas boas obras. Também não me coloco contra isso². Paulo nos ensina
que Deus preparou de antemão as boas obras em que os eleitos andariam.
Resumidamente, nossas boas obras demonstram nossa regeneração e comunhão³.
Ainda assim, elas não pregam o
Evangelho.
Talvez você tenha ouvido essa frase
várias vezes e ela não fez qualquer diferença em sua vida. Você continua
evangelizando – com palavras – e ela é apenas mais um slogan que os
crentes tanto gostam. Ou você nunca ouviu e a igreja parece muito bem. Se estão
falando isso, não faz diferença. Também conheço um monte de gente que não foi
influenciado por essa frase.
Mas a questão não é essa. A questão
é que existem outros que não conhecemos que creem nisso. Existem aqueles que
abrem uma pequena concessão para frases assim e logo têm uma teologia
distorcida entrando em sua mente. A questão é que por trás dessa frase existem
alguns pressupostos errôneos a respeito da mensagem do Evangelho e do meio
designado por Deus para proclamá-la.
Dito isso, quais são os maiores
problemas de pensar que é possível pregarmos o Evangelho sem palavras?
Alguns
problemas
Em primeiro lugar, o Evangelho é
uma doutrina. E
doutrinas se expressam em palavras. Sei que muitos não gostam de ver a mensagem
que os salvou ligadas a uma expressão tão burocrática como “doutrina”, mas essa
é a verdade. Anunciar que Cristo morreu por nossos pecados é o poder de Deus
para salvação de todo aquele que crê, mas também é doutrina. Não estou
defendendo que alguém precisa saber todos os pormenores da expiação para ser
salvo, mas que apenas palavras podem expressar essa mensagem, mesmo em suas
expressões mais singelas – como no ensino das crianças, por exemplo.
Em segundo lugar, o meio
designado para a divulgação do Evangelho é a pregação. Um dos textos mais
importantes sobre o assunto está em 1 Coríntios 1. Paulo diz que não apenas a
mensagem da cruz é loucura, mas o meio pelo qual essa mensagem é transmitida é
loucura. É por isso que os cristãos sempre são tentados a usar outras formas de
“pregação”: vídeos, musicais, testemunhos, milagres, publicidade e, claro, o bom
exemplo. Por que isso? Simplesmente porque sabemos que o meio usado por Deus
não parece ser tão eficaz para nossa geração. Isso não é novo, mas algo que já
acontecia nos tempos de Paulo.
O bom exemplo é algo ótimo. A santidade
produz frutos que trazem glória a Deus. Mas achar que este é o método para
trazer conversão aos corações apenas confirma o nosso desejo de ser mais sábios
do que Deus.
Além disso, essa expressão revela
certa ingenuidade quanto à pecaminosidade e limitações humanas. Isto é,
crê-se que o homem decaído, por seus próprios raciocínios e observação chegará
à conclusão de que há uma mensagem pregada. Não apenas isso, mas ingenuamente
crê-se que ele poderá compreender aspectos essenciais à mensagem do Evangelho,
como a ira de Deus sobre ele, a substituição penal, a necessidade do
arrependimento dos pecados, a justificação pela fé somente, e por aí vai. Como
alguém já disse, usar essa expressão é o mesmo que falar “Me passe o número do
seu telefone. Se necessário, use dígitos”.
Mais ainda: há certo
pelagianismo oculto por essa expressão e péssima compreensão da doutrina do
novo nascimento. A Bíblia claramente ensina que o pecador deliberadamente
suprime o conhecimento que tem de Deus (Rm 1) e nega a própria consciência (1Tm
4.2). Na passagem em que Jesus conta a história de Lázaro e o homem rico (Lc
16.19-31), o Senhor usa as palavras de Abraão para dizer: “Se não ouvem a
Moisés e aos profetas, tampouco acreditarão, ainda que algum dos mortos ressuscite”.
Por toda a Escritura, observamos um povo duro de coração, que vê milagres quase
diariamente, voltando-se contra seu Criador.
Sem a regeneração,
interpretaremos qualquer evento do universo segundo o conselho dos ímpios e o
nosso coração maldito. Mesmo os milagres de Jesus muitas vezes foram usados
contra ele e servirão apenas como evidência da culpa daqueles que não aceitaram
o Redentor. A mensagem bíblica é clara: não são atos, sinais e maravilhas
produzidos por nós que convencerão o homem, mas o Espírito Santo, por meio da
mensagem que ele nos designou a entregar.
Não estou tentando tirar da igreja
a necessidade de um bom testemunho externo. Isso é exigido dos crentes
e, especialmente, dos pastores. Entretanto, precisamos levar em consideração
que o homem é deliberada e terrivelmente rebelde. O mau testemunho da igreja
não é o principal motivo para que o ímpio não seja atraído pela mensagem do
Evangelho, como pensam alguns. Nossas injustiças são evidências que o
incrédulo usará para reforçar sua corrupção e ódio ao Criador. Precisamos
entender que há uma diferença: nossos erros são reais, mas a causa em que eles
são usados é falsa. Seremos cobrados por nosso mau testemunho, mas ninguém será
absolvido porque a igreja ao lado deu mau exemplo.
E
mais alguns problemas
Como se não bastassem os graves
erros teológicos, existem problemas pastorais nesse slogan. Entendo que
há a boa intenção de instar as ovelhas a exibirem boas obras. Mas não muda o
fato de que as consequências podem ser problemáticas. Algumas delas:
Em alguns casos, isso colabora
com a preguiça mental de muitos membros da igreja. Ao invés de estudar e
treinar para trazer respostas “a qualquer que nos pedir a razão da nossa esperança”,
o crente conforma-se com a exibição de seu bom testemunho. Infelizmente, muitos
líderes nem mesmo se preocupam em ensinar seus liderados a usarem a
apologética, com a desculpa de que apenas ser um bom garoto satisfará os
questionamentos da humanidade.
Outro perigo é ser um incentivo
ao legalismo. Expressões como viver o Evangelho podem induzir os crentes a
pensarem que sua vida cristã baseia-se primordialmente naquilo que eles fazem,
não no que Cristo fez. Pode parecer algo simples, mas é enganoso e pedra de
tropeço para humanos decaídos. Transformamos qualquer coisa em fonte de
autojustiça e mesmo a mensagem bíblica pode ser distorcida a ponto do Evangelho
virar uma Lei, não boa nova.
Por fim, o fato é que, às vezes,
os incrédulos demonstram melhores virtudes que os cristãos. Não sei quanto
a você, mas muitas vezes me envergonhei ao perceber que alguns colegas e amigos
eram mais honestos ou amorosos que eu, conhecedor dos princípios bíblicos.
Mas, apesar de nossas falhas, o
Evangelho ainda brilha gloriosamente sobre o mundo. Na verdade, em certo
sentido, a glória de Cristo é vista mais belamente quando pecadores enfatizam o
fato de que Deus os recebeu apesar de suas obras. Pregar o Evangelho sem
enfatizar nossa pecaminosidade é retirar da cruz uma parte preciosa de seu
valor.
A Bíblia é clara a respeito da
necessidade de boas obras. Mas ela não as chama de Evangelho. Elas são
evidências da transformação do crente, de sua bem-aventurança e da presença do Espírito
Santo. Já o Evangelho é o poder de Deus para salvação de todo o que crê. E essa
mensagem é voltada especialmente para aqueles que são fracos e necessitados de
graça e da cruz de Cristo. Ela é voltada para o fariseu, o escriba, o publicano
e a prostituta. E sua glória é nivelar todos nós a uma palavra: pecadores.
“Porque Cristo, estando nós ainda
fracos, morreu a seu tempo pelos ímpios. Porque apenas alguém morrerá por um
justo; pois poderá ser que pelo bom alguém ouse morrer. Mas Deus prova o seu
amor para conosco, em que Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores” (Romanos 5.6-8).
Mas Deus escolheu as coisas loucas
deste mundo para confundir as sábias; e Deus escolheu as coisas fracas deste
mundo para confundir as fortes; E Deus escolheu as coisas vis deste mundo, e as
desprezíveis, e as que não são, para aniquilar as que são; Para que nenhuma
carne se glorie perante ele. (1 Coríntios 1.27-29)
Obs.: Agradecimentos ao Schulz por
algumas ideias de versos que foram usadas no início desse post.
¹ A frase
é popularmente atribuída a Francisco de Assis, mas há controvérsias sobre isso.
² Na
verdade, Jesus diz que já que somos o sal. O que ele ordena é que não
perdamos o sabor. Mas, como é comum nos púlpitos atuais, o indicativo torna-se
imperativo conforme o gosto do pregador.
³ A ideia
de que “seremos conhecidos pelo amor” pressupõe que as pessoas saibam que
aquela comunidade é cristã. Elas não irão simplesmente descobrir sozinhas a
mensagem. É preciso que alguém, antes ou depois, explique o motivo da união de
uma igreja – Jesus Cristo.
por Josaías
Jr.
Fonte: iPródigo
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