“Duas
coisas são infinitas: o universo e a burrice humana. Mas a respeito do universo
ainda tenho dúvidas", disse Albert Einstein. Componente inalienável da
natureza humana, a burrice é, provavelmente, a força mais perigosa do cosmos.
O que significa burrice? O conceito não tem uma definição teórica
indiscutível. Não é o oposto de inteligência: há pessoas inteligentes que, vez
por outra, fazem o papel de burras.
Uma definição convincente foi dada pelo historiador e economista
italiano Carlo Cipolla: “Uma pessoa burra é aquela que causa algum dano a outra
pessoa ou a um grupo de pessoas sem obter nenhuma vantagem para si mesmo – ou
até mesmo se prejudicando.”
A burrice tem a peculiar vocação de se traduzir em ações, e por isso
mesmo se torna perigosa. Segundo Cipolla, que identificou cinco “leis
fundamentais da burrice”, até mesmo os mais inteligentes tendem a desvalorizar
os riscos inerentes à burrice. E ela é mais perigosa que a crueldade: esta,
tendo uma lógica compreensível, pode pelo menos ser prevista e enfrentada. Para
começar, pensemos naqueles que, em tempos de Aids, mantêm relações sexuais sem
proteção ou nos que não usam um antivírus no próprio computador, expondo a si
mesmos e aos outros ao contágio de vírus reais ou virtuais.
A burrice sempre ofereceu cenas e personagens cômicos, como no conto de
Andersen A roupa nova do imperador, no qual dois alfaiates mal-intencionados
convencem o rei a vestir uma roupa maravilhosa, invisível para as pessoas
burras. Era uma armadilha: ninguém queria admitir a própria burrice nem
contradizer o soberano afirmando não ver a roupa (que de fato não existia). Só
um menino teve a coragem de dizer que o rei estava nu, revelando a trapaça.
Mas, atenção: rir da burrice pode deixá-la “simpática” e, portanto,
desvalorizada. Se na ficção o estúpido é facilmente reconhecido, na vida real
as coisas são diferentes.
A burrice tem três
características fundamentais:
1) Ela é inconsciente e recidiva: o burro não sabe que é burro e tende a
repetir várias vezes o mesmo erro. Tais características contribuem para dar
mais força e eficácia à ação devastadora da burrice. A pessoa estúpida não
reconhece os próprios limites, fica fossilizada em suas convicções particulares
e não sabe mudar. Por isso, como diz o psicólogo italiano Luigi Anolli, “no
âmbito clínico, a burrice é a pior doença, por ser incurável”. O estúpido é
levado a repetir os mesmos comportamentos porque não é capaz de entender o estrago
que faz e, portanto, não consegue se corrigir.
2) A burrice é contagiosa. As multidões são muito mais estúpidas que as
pessoas que as compõem. Isso explica por que populações inteiras (como
aconteceu na Alemanha nazista ou na Itália fascista) podem ser facilmente
condicionadas a perseguir objetivos insanos, um fenômeno bastante conhecido na
psicologia. “O contágio emotivo próprio do grupo diminui a capacidade crítica”,
explica Anolli. “Percebe-se a polarização da tomada de decisão: escolhe-se a
solução mais simples, que na maioria das vezes é a menos inteligente.”
3) Além da coletividade, há um outro fator que amplifica a burrice:
estar numa posição de comando. “O poder emburrece”, afirmava o filósofo alemão
Friedrich Nietzsche. Por quê? Quando estão no poder, as pessoas muitas vezes
são induzidas a pensar que, justamente por ocuparem aquele posto, são melhores,
mais capazes, mais inteligentes e mais sábias que o resto da humanidade. Além
disso, estão cercadas de aduladores, seguidores e aproveitadores que reforçam o
tempo todo essa ilusão. Dessa forma, quem está no governo chega a cometer as
mais graves faltas com a aprovação geral.
Todos temos um fator de burrice maior do que imaginamos. Ele leva
cientistas a só considerar um estudo sério quando coincide com seu ponto de
vista. Mas o otimismo, mesmo sem base sólida, prolonga a vida, como
demonstraram freiras norte-americanas.
Campeões da confusão
O cinema está repleto de heróis estúpidos que armam confusões sem fim,
para si e para os outros, resultando em divertidas comédias. Veja, a seguir,
algumas das mais famosas.
• Laurel e Hardy em Mestres do Baile (1943)
• Peter Sellers em A Pantera Cor-de-Rosa (1963) e Um Convidado bem Trapalhão
(1968)
• Steve Martin em O Panaca (1978)
• Jim Carrey em Debi e Lóide (1995)
• Tom Arnold em Os Babacas (1996)
• Mike Myers em Austin Powers (2002)
• Steve Carell em Agente 86 (2008)
O Poder –
Seja ele político, econômico ou burocrático – aumenta o potencial nocivo
de uma pessoa burra. Um exemplo extremo é dado no filme Dr. Fantástico, de
Stanley Kubrick. Nele, um grupo de estúpidos de grau máximo pensa em detonar
uma carga explosiva nuclear que levará ao fim do mundo, por uma simples
frivolidade.
Por seu lado, o rei Luís 16, no dia 14 de julho de 1789 (a data da Queda
da Bastilha, evento que deu início à Revolução Francesa), escreveu em seu
diário: “Hoje, nada de novo.” O mesmo obtuso e burro senso de invencibilidade
fez o general George Custer supervalorizar suas forças e atacar os índios em
Montana (EUA), em 1876. Resultado: centenas de soldados do Exército
norte-americano foram massacrados pelos índios sioux e cheyennes no riacho
Little Big Horn. Ou, ainda, levou Napoleão a atacar a Rússia em pleno inverno
de 1812: o Exército francês foi dizimado pelo frio e pela exaustão. Sem contar
as previsíveis tragédias das guerras do Vietnã e do Iraque de hoje.
Em cada um de nós há um fator de burrice que é sempre maior do que
imaginamos. Isso não é, necessariamente, um problema. Ao contrário, a estupidez
tem uma função evolutiva: serve para nos fazer agir precipitadamente, sem
pensar muito, o que em certos casos se revela mais útil do que não fazer nada.
A burrice nos permite errar, e na experiência do erro há sempre um progresso do
conhecimento. Assim, o ponto-chave para anular a burrice está em reconhecer os
próprios erros e se corrigir.
Como dizia o escritor francês Paul Valéry: “Há um estúpido dentro de
mim. Devo tirar partido de seus erros.”
Como? Um estudo da Universidade de Exeter (Grã-Bretanha), publicado no
Journal of Cognitive Neuroscience, identificou uma área do cérebro – no córtex
temporal – que é ativada quando está para se repetir um erro já cometido: um
sinal de alarme nos impede de recair na mesma situação. Se na base da burrice
existisse uma anomalia localizada, talvez um dia pudéssemos corrigi-la com uma
cirurgia. Desde que não caíssemos nas mãos de um cirurgião idiota.
Todos nós estamos
Todos nós estamos prontos a admitir que somos um pouco loucos, mas
burros, jamais. Fuçando na literatura científica, é possível descobrir que
somos um pouco burros, cada qual de um jeito diferente; mas o cérebro funciona
de forma a nos esconder essa realidade. E mais: podemos descobrir que, apesar
de tudo, é melhor assim.
As estatísticas indicam que 50% dos motoristas não sabem dirigir: um tem
dificuldade para estacionar, outro circula a 20 km/h, um terceiro ocupa duas
faixas como se a rua fosse dele. Mas quem não sabe dirigir não tem consciência
disso, ou desistiria, preferindo o transporte público e aumentando, assim, as
próprias (e as alheias) possibilidades de sobrevivência. O mesmo exemplo pode
ser aplicado às pistas de esqui, ao universo de trabalho, ao campo de futebol e
assim por diante.
Quem é suficientemente inteligente para reconhecer que não sabe guiar
direito? Se formos a um hospital e entrevistarmos os recém retirados das
ferragens de um carro, descobrimos que ninguém admite integrar a categoria dos
incapazes. Pesquisas mostram que 80% das pessoas internadas por acidente de
carro acreditam pertencer à elite dos motoristas com habilidades superiores à
média. E a responsabilidade do acidente? A maioria atribui seus erros à falta
de sorte ou a algum idiota que cruzou seu caminho.
Ações suicidas
Em 1876, o general George Custer, no comando da 7ª Cavalaria americana,
decidiu atacar – apesar do pequeno contingente disponível – um grande
acampamento sioux em Little Big Horn. Os soldados foram todos massacrados. Um
exemplo da burrice no poder.
E tem mais.
Imagine se agora como um verdadeiro fracassado em um determinado setor –
por exemplo, na pintura, na natação, em estatística. E tente imaginar ser
suficientemente inteligente para admiti-lo. Não se iluda: também aqui seu lado
burro será revelado. “Seu cérebro encontrará um obstáculo, atenuando a
importância daquele setor”, explica Cordelia Fine, pesquisadora no Centro de
Filosofia Aplicada e Ética Pública da Universidade de Melbourne
(Austrália). “Aquela carência não o
incomodará mais”, prossegue ela, “pois seu cérebro tenderá a considerar o
desenho, a natação e a estatística como atividades supérfluas”. Assim, é melhor
nos contentarmos em admitir que nossas fraquezas são comuns o bastante para
fazer parte da falibilidade humana, enquanto nossos pontos fortes são raros e
especiais.
Há uma explicação para esse comportamento?
“A falência é a principal inimiga do nosso ego e da nossa autoestima. É por
isso que o cérebro, um grande vaidoso, faz o máximo para bloquear o caminho a
essa hóspede indesejada”, acrescenta a pesquisadora.
Isso não é uma grande novidade, visto
que no frontão do templo de Delfos, na Grécia, estava escrito: “Conhece-te a ti
mesmo e conhecerás o universo e os deuses.” Mas o autoconhecimento não é tão
fácil: a idéia de quem somos varia de acordo com as necessidades. Em 1989,
Rasyid Sanitioso e Ziva Kunda, na época psicólogos na Universidade de Princeton
(EUA), mostraram a alguns jovens pesquisadores falsos estudos que documentavam
um maior sucesso das pessoas extrovertidas. A outros deram pesquisas que premiavam
os introvertidos. Pois bem: os estudantes se identificavam com qualquer dos
traços de personalidade apresentados como passaporte para o sucesso...
Várias escolhas
Várias escolhas absurdas são feitas de maneira burra, sem uma avaliação
dos prós e contras, dados e estatísticas reais.
Casar-se, por exemplo, é uma decisão que implica um vínculo para toda a
vida. Quem, cruzando as portas da igreja ou do cartório, tem a perfeita
consciência de que, segundo as estatísticas, o casamento tem 50% de chance de
dar errado? No momento do “sim”, só sabem disso os pais dos noivos, os avós, os
amigos, parentes e até mesmo o padre e o juiz. Os interessados diretos
demonstram uma obstinação cega, perfeitamente convencidos de que sua união será
uma exceção a todas as regras. Até porque, se não estivessem seguros, a
continuidade da raça humana dependeria da péssima eficácia dos contraceptivos e
o Homo sapiens poderia já estar extinto.
E a capacidade de admitir nossos erros de avaliação? Quase inexistente:
estamos atados a nossas convicções como se elas fossem coletes salva-vidas. O
que pedimos ao mundo não são novos desafios a nossas ideologias políticas e
sociais. Preferimos amigos, livros e jornais que compartilham e confirmam
nossos iluminados valores. Mas, cercando-nos de pessoas oportunistas, reduzimos
a chance de que nossas opiniões sejam questionadas.
Também nos vários setores da pesquisa, a burrice se apresenta
pontualmente: os envolvidos tendem a considerar um estudo sério e convincente
quando os resultados coincidem com seu ponto de vista; ou julgam no
ultrapassado e cheio de defeitos quando vão de encontro a suas expectativas.
Esse fator explica por que muitas vezes é inútil tentar demover um obstinado de
manter ideias claramente erradas.
Todas as vezes que nosso cérebro pensa no futuro, tende a produzir
previsões otimistas. Por exemplo: estamos sempre certos de que nosso time do
coração vai ganhar o jogo, embora haja outra possibilidade. As previsões
“autocelebrativas” também acontecem nas bancas de apostas, nos cassinos e nas
loterias, nas quais as pessoas desperdiçam dinheiro porque a capacidade de
julgamento fica dominada pelo desejo de vencer. Qual é a razão desse estúpido
otimismo do cérebro? Ele nos protege contra as verdades desconfortáveis.
Há pessoas que...
Há pessoas que chegam incrivelmente perto da verdade sobre si mesmas e a
respeito do mundo. Elas têm uma percepção equilibrada, são imparciais quando se
trata de atribuir responsabilidades de sucessos e fracassos e fazem previsões
realistas para o futuro. Testemunhas vivas do quanto é arriscado conhecer a si
mesmas, elas são, para muitos psicólogos, pessoas clinicamente depressivas.
Martin Seligman, docente de psicologia na Universidade da Pensilvânia (EUA),
demonstrou que o chamado “estilo explicativo” pessimista é comum entre os
deprimidos: quando fracassam, assumem toda a culpa, consideram-se burros,
péssimos em tudo e se convencem de que essa situação vai durar para sempre.
E quais são os resultados de tanta (às vezes excessiva) honestidade
intelectual? Deborah Danner, pesquisadora da Universidade de Kentucky (EUA),
examinou os efeitos da longevidade em 180 noviças norte-americanas, otimistas e
pessimistas. Quanto mais otimistas se mostravam as religiosas, mais tempo
viviam. As mais joviais viveram em média uma década além das pessimistas. É
claro que ser realistas e ao mesmo tempo serenos e otimistas seria o ideal; mas
não há dúvida de que às vezes um pouco de burrice faz bem.
Equipe
Planeta
Fonte:
www.revistaplaneta.com.br
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