Algumas pessoas são extremamente
sensíveis. Isso se manifesta claramente quando assistem a um filme. São as
pessoas que choram, que gritam, que usam linguagem corporal e facial para
expressar seu intenso envolvimento com o filme a que estão assistindo. O mais
engraçado é perceber que em alguns momentos essas pessoas parecem achar que
conseguirão influenciar de alguma forma o destino da história desenvolvida
diante delas. Você ouvirá em alguns momentos: “Não faça isso! Como você é
burro!” “Não entre aí, porque o homem que quer lhe matar está dentro desse
quarto!” “Rápido! Rápido! O tempo está acabando!” Todos esses clamores do
espectador basicamente se traduzem em: “Se você soubesse o que eu sei, sua
decisão seria diferente.” Essa situação não é encontrada apenas em cinéfilos,
mas em situações do dia a dia. Vemos alguém tomando uma decisão que temos
certeza de que seria diferente, caso a pessoa tivesse as informações ou a
experiência que nós temos.
O que isso tem a ver com a discussão atual a
respeito da ordenação de mulheres? Muita coisa! Com este artigo, pretendo
mostrar que se os membros da Igreja Adventista do Sétimo Dia soubessem de
algumas nuances e falácias relacionadas com o debate da ordenação de mulheres,
provavelmente a opinião deles seria diferente. Quem sabe não teríamos tamanha
polarização entre leigos, teólogos e administradores da igreja e, certamente,
não encontraríamos tanta má utilização de argumentos tanto de um lado quanto do
outro. Opiniões seriam mais respeitadas e argumentos seriam mais bem
desenvolvidos.
É importante primeiro entender com
o que estamos lidando ao falar sobre a ordenação de mulheres e a Conferência de
2015. A discussão atual não é se mulheres podem atuar como pastoras (esse cargo
já é reconhecido pela IASD), nem se mulheres podem ser ordenadas (elas já podem
ser ordenadas diaconisas e, em alguns casos, anciãs). O debate é
especificamente sobre a ordenação da mulher ao ministério pastoral. O motivo
pelo qual estou abordando as falácias utilizadas no debate sobre ordenação de
mulheres (em geral) é porque alguns advogam que a ordenação da mulher, tanto
como diaconisa quanto anciã, e a possibilidade de ser ordenada pastora, deve
ser oficialmente abolida.
Mas o que é uma falácia? Trata-se
de um defeito em um argumento que consiste mais do que em premissas (razões)
falsas. Todo argumento é constituído de premissas (razões para defender uma
conclusão) e uma conclusão. Argumentos podem ser tão simples quanto: “Todo
adventista guarda o sábado. Eu sou adventista. Portanto, eu guardo o sábado.”
Tudo o que tentamos defender é seguido de premissas, razões do porquê
defendemos aquilo. Porém, ao desenvolver argumentos, muitas pessoas os
desenvolvem da forma errada, ou com premissas falsas, ou com defeitos no
argumento (falácia). Por exemplo, alguém pode dizer: “Não devemos confiar nas
doutrinas adventistas porque fulano é adventista e tem um caráter nada
exemplar.” Esse argumento, por mais que seja um argumento, é falacioso. Ele cai
na falácia chamada ad hominem (contra o homem), que acontece quando alguém vai
contra um argumento ao abusar verbalmente de outra pessoa. Esse é um defeito no
argumento porque o argumento bíblico/religioso de alguém não é uma pessoa.
Agora que entendemos melhor o que é
uma falácia, antes de comentar aquelas utilizadas no debate sobre a ordenação
da mulher, deixe-me esclarecer algumas questões.
Minha posição no assunto não
importa. Você pode se perguntar como isso é possível, uma vez que estou
escrevendo um artigo a respeito. Apesar disso, o que irei expor a seguir não é
fruto da minha predileção por um posicionamento, mas sim fruto da minha
predileção por argumentos válidos quando se trata de um posicionamento. Sou
formada em teologia pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo. Fui uma
das cinco mulheres que cursaram teologia entre 2006 e 2009, em meio a quase 500
alunos homens. Porém, nunca senti o desejo de ou o chamado para ser ordenada
pastora da Igreja Adventista (apesar de repetidamente ser chamada de
“pastora”). Minha paixão sempre foi e sempre será levar pessoas a Cristo e
disseminar o evangelho correto por onde quer que eu vá. Sempre defendi uma
atuação mais destacada das mulheres no ministério, mas ordenação nunca fez
parte da minha apologia.
Em segundo lugar, apesar de já ter
ouvido pessoas defendendo o contrário, sou contra qualquer defesa de princípios
bíblicos ou eclesiásticos com base em pragmatismo. Ou seja, “é certo” não
implica “qualquer argumento vale”. Pode muito bem ser que a ordenação da mulher
não faça parte do plano de Deus para a Igreja Adventista. Mas isso não nos
autoriza a utilizar argumentos inválidos e falácias para defender essa posição.
E vice-versa. A união da igreja é de crucial importância quando se trata dessa
questão, mas não deveria levar ninguém a utilizar meios desonestos para chegar
a tal fim. Como dizem, o fim não justifica os meios.
Finalmente, este artigo não busca
ser um esclarecimento exegético (bíblico) do assunto. A defesa dos dois lados
está disponível na internet para qualquer um que tenha interesse em conhecê-los
(www.adventistarchives.org/ordination). Há, inclusive, um livro de edição e
autoria evangélica chamado Two Views on Women in Ministry [Dois pontos de vista
sobre mulheres no ministério] (Grand Rapids: Zondervan, 2005), organizado
por Stanley Gundry e James Beck. Ele
oferece um bom panorama tanto da base bíblica quanto das implicações para os
igualitários (aqueles que são a favor) e os complementaristas (os que são
contra). O que eu acredito abertamente é: existem versos bíblicos bons e dentro
do contexto para ambas as visões sobre a ordenação de mulheres, em geral, e de
pastoras, em especial. É por essa razão que tenho a tendência de concordar com
a posição de que, por não existir forte base bíblica para qualquer um dos
lados, cada Divisão mundial da Igreja Adventista deveria ter a liberdade de
decidir a favor ou contra, levando em conta assuntos como a aceitação da cultura
e a necessidade urgente de auxílio pastoral. Meus motivos contra a ordenação se
caracterizam mais como pragmáticos do que bíblicos.
Para deixar claro como o sol: meu
objetivo não é defender uma posição ou provocar conflitos, mas, simplesmente,
apontar as falácias utilizadas nesse debate (principalmente do lado
complementarista) e ajudar a promover uma compreensão mais objetiva do que é um
bom argumento e do que não é. Vídeos e textos em defesa da visão
complementarista podem ser facilmente encontrados na internet. Também não estou
alegando que todos os que participam dessa conversa utilizam esses argumentos,
mas todos já foram escutados ou lidos por mim em algum meio de comunicação.
Sem mais delongas, vamos ao assunto
do título: falácias e a ordenação da mulher.
Falácia
da rampa escorregadia
Ao lermos o que se diz contra a
ordenação da mulher, encontramos repetidas vezes argumentos semelhantes a
estes:
Se aceitarmos a ordenação de
mulheres, em seguida teremos que mudar todo o nosso método de interpretação
bíblica, e isso vai mudar doutrinas adventistas com o tempo. Depois disso,
aceitaremos a agenda social do homossexualismo. Uma coisa certamente levará a
outra! Se fosse só uma questão de ordenação da mulher, tudo bem, mas é mais do
que isso. Tudo vai mudar depois disso. Essa será uma decisão destrutiva para a
interpretação bíblica da Igreja Adventista.
Essa falácia é conhecida como
“falácia da rampa escorregadia” (ou “bola de neve”). Ou seja, ela ocorre quando
a conclusão de um argumento se baseia em uma suposta reação em cadeia e não
existe razão suficiente para pensar que essa reação irá, de fato, acontecer.
Muitos filhos reconheceriam essa
falácia por já terem ouvido da boca da mãe: “Filho(a), se você sair hoje com
aquele menino(a), você vai virar um delinquente. Amanhã você estará usando
drogas, depois vai começar a roubar e daqui a pouco tempo estará na prisão,
onde certamente você vai morrer. Ou vai sair da prisão e morrer!”
O exemplo foi exagerado, mas
demonstra bem o erro do argumento. É difícil compreender como a ordenação de
mulheres pode desencadear uma cadeia de eventos tão desastrosa, e certamente
não existe razão suficiente para pensar que ela de fato acontecerá.
Falácia
da falsa dicotomia
Outro argumento utilizado e que pode
ser colocado de maneira formal é o seguinte:
1. Ou a Bíblia tem uma mistura de
mandamentos universais e mandamentos culturais e é uma mistura de verdade e
erros, ou todos os seus mandamentos são universais.
2. A Bíblia não é uma mistura de
verdade e erros.
3. Portanto, todos os mandamentos
da Bíblia são universais.
Ou:
Uma igreja que segue a Bíblia e a
Jesus Cristo não ordenaria mulheres. Devemos ser a igreja de Jesus, o “povo da
Bíblia”, o que sempre nos consideramos.
A falácia que aparece nesses dois
argumentos é chamada de “falsa dicotomia”. Ela é cometida quando o argumentador
apresenta duas alternativas pouco prováveis como se elas fossem as únicas
disponíveis. O argumentador então elimina a alternativa menos desejada,
deixando-nos com a que ele prefere. Você se lembra de alguém que já tenha lhe
falado: “Ou você concorda comigo sobre esse assunto ou você vai se perder
eternamente”? Talvez não tenham lhe falado isso abertamente, mas
implicitamente.
No primeiro argumento acima, a
falácia está em não apresentar uma terceira alternativa, certamente mais equilibrada,
de que a Bíblia possui, sim, mandamentos culturais e universais, mas isso não
quer dizer que ela seja uma mistura de verdade e erro! O que fazer com o
mandamento do ósculo santo (1Co 16:20)? Quem está solteiro não deve procurar
esposa (1Co 7:27)? Por que dizer que tudo o que foi escrito na Bíblia é para
nós, no século 21, obedecermos? Onde está o respeito para com o contexto
cultural em que os autores estavam inseridos? Essa é uma das principais regras
da interpretação bíblica.
Em primeira instância, Deus falou
com os profetas e o povo daquele tempo. Em segunda instância, essa mensagem é
aplicada a nós. Não estou dizendo com isso que aquilo que nos deixa
desconfortáveis deva ser descartado e aquilo que se ajusta às nossas ideias deva
ser incorporado em nossa vida. Jamais! Mas devemos utilizar instrumentos de
interpretação bíblica para ter o discernimento entre comandos culturalmente
embasados e comandos universais.*
No segundo argumento, é fácil ver
qual é a falsa dicotomia: ou somos o povo da Bíblia ou ordenamos mulheres. Não
há terceira alternativa e não há como unificar as duas ideias. Isso é
falacioso.
Falácia do apelo ao medo
O medo leva muitas pessoas a
fazerem e decidirem coisas que, do contrário, não fariam ou decidiriam. Muitos
defensores do complementarismo recorrem a essa falácia, como vemos no seguinte
argumento:
Se permitirmos a ordenação da
mulher na Igreja Adventista, logo as pessoas perguntarão por que guardamos o sábado.
Pois se fizermos o primeiro por questões culturais, por que não seguimos a
norma cultural em relação ao segundo?
Ao seguirmos a cultura do mundo,
estamos deixando os princípios da Bíblia.
A “falácia de apelo ao medo” é autoexplicativa.
O argumentador recorre ao medo da audiência a fim de convencê-la da conclusão.
Se existe algo que fomenta o medo de qualquer adventista é ser “do mundo”, a
igreja se “secularizar”, se tornar “pós-moderna”. Esses, de fato, são
problemas, e a igreja tem feito esforços formidáveis para fugir da tendência de
nos adequarmos ao “mundo”. Porém, muitas vezes, “cultura” se torna uma palavra
que produz arrepios, e não um fenômeno que sempre existiu e sempre nos
influenciará, não necessariamente para o mal.
A implicação dessa falácia é
simples: não sei qual é a relação entre a guarda do sábado e a ordenação de
pastoras, mas se eu conseguir convencê-lo de que existe uma relação estreita
entre os dois assuntos, o medo prevalecerá.
Falácia da supressão de evidência
A Bíblia é claramente contra a
autoridade da mulher sobre o homem. Portanto, não devemos ordenar mulheres (nem
pastoras).
A “falácia da supressão de
evidência” ocorre quando um argumento ignora uma premissa importante que, se
levada em consideração, provavelmente modificaria a conclusão. Isso é utilizado
comumente em comerciais como, por exemplo: “Use este desodorante e tenha
mulheres caindo aos seus pés!” O comercial deixou de mencionar que as mulheres
não vêm “junto com o pacote” do desodorante, mas que, a fim de ter mulheres
caindo aos seus pés, você provavelmente também terá que ser apresentável.
No argumento aparentemente bíblico
colocado acima, o argumentador ignora uma premissa importante que poderia mudar
a conclusão: a Bíblia também apresenta mulheres em posição de liderança (At
1:12-14; 18:24-26; 21:7-9; Rm 16:1-16).
Falácia do apelo à ignorância
Não existe evidência bíblica para a
ordenação de mulheres. Portanto, mulheres não devem ser ordenadas.
Esse é um argumento muito comum na
discussão. A “falácia do apelo à ignorância” acontece quando as premissas de um
argumento afirmam que nada foi provado sobre algo, e a conclusão então faz uma
afirmação definitiva sobre o assunto.
Essa falácia se torna complicada
quando o assunto é ordenação de mulheres, porque não existe uma declaração
absoluta para nenhum dos lados. Nenhum verso bíblico diz: “Mulheres não devem
ser ordenadas para o ministério”, ou: “Mulheres devem ser ordenadas para o
ministério.” Fazer uma dessas declarações é errôneo e implica esperar algo da
Bíblia que não está lá.
Pode-se pensar que estou desviando
a atenção do estudo da Bíblia a fim de utilizar métodos filosóficos para
discutir a questão. Muito pelo contrário. Creio que somos e devemos continuar
sendo o “povo da Bíblia”. Porém, creio que devemos sê-lo de forma responsável.
Meu desejo é que continuemos a orar
pelos líderes da igreja a fim de serem dirigidos por Deus neste ano, não
somente na decisão sobre a ordenação de mulheres, mas também no desenvolvimento
e no uso de argumentos a favor ou contra.
Autora: Marina Garner Assis
- formada em Teologia pelo Unasp e mestranda em Filosofia da Religião pela
Trinity International University, nos EUA
*
Para uma ótima obra adventista sobre métodos de interpretação bíblica, veja
George W. Reed (ed.), Compreendendo as Escrituras: Uma abordagem adventista
(Engenheiro Coelho, SP: Unaspress, 2007).
**
Quero agradecer ao meu amigo e teólogo Matheus Cardoso pela edição do texto e
esclarecimento de pontos importantes.
Fonte:
www.criacionismo.com.br
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